Florencia Guzzetti é argentina e atualmente reside em Porto, Portugal, uma cidade que lhe apaixonou enormemente pelas ruas, o céu, a proximidade com o mar. Estudou Literatura em Buenos Aires e agora pensa sobre a pornografia e a suas relações com os feminismos. Gosta imensamente de ler e escrever e está muito motivada com o desafio de fazê-lo numa outra língua tão linda como é o português.
Que não seja imortal, posto que é chama,
mas que seja infinito enquanto dure
Soneto de Fidelidade, Vinicius de Moraes
Falarei de um presente que me deram há exatamente um ano e que me marcou de muitas maneiras. O corpo, de Claudia Masin, é um livro de poemas nascidos de filmes (Azul é a cor mais quente, Crash – Estranhos Prazeres, All that Jazz – O Show Deve Continuar, Call me by your name, Mommy, entre outros) e ilustrado com os desenhos de Ivan Jerônimo, nascidos da poesia. Um livro maravilhoso, um livro-arte autêntico, daqueles que todos os fãs de livros gostariam de ter decorando a biblioteca. (Pequeno detalhe: não tenho mais biblioteca, e este livro está gasto pelo transporte, com algumas folhas úmidas de tantas chuvas que tomou. Algo que meu eu passado teria cuidado para evitar, e que meu eu atual entende de forma diferente: que essas marcas fazem a sua beleza, que o uso gasta, suja, falece. E o corpo finalmente repousa / do esforço por evitar o dano inevitável).
Aconteceu como qualquer bom presente, e o que me deram foi muito mais do que o objeto em si: foi a possibilidade de me comover novamente, foi relembrar que a literatura tem esse poder sobre mim, foi a esperança de me reconhecer – mais uma vez – com um corpo e uma emoção capazes de serem penetrados, foi também me devolver aquela busca constante de chorar profundamente de emoção, a vontade de me saber frágil, de gostar de mim frágil, de me querer sempre assim. Este livro foi aquele choque, aquele impacto, aquela comoção que minha sensibilidade precisava para me lembrar de que estou viva – algo que não é menor nestes tempos.
Claudia Masin nasceu no Chaco, Argentina, em 1972. É psicanalista e poeta e afirma que foi seu sofrimento que a levou a esses dois mundos. “Ambos, psicanálise e poesia, me mostraram que é possível transformar esse sofrimento em força, potência, em afirmação e celebração do fato estranho, belo e único de estar vivx”, afirma em uma entrevista.
O corpo é, sem dúvida, uma celebração: afirmação do momento, destacamento daqueles pequenos momentos em que poderíamos (gostaríamos?) de perder a vida por uma mínima dose de paixão. Sua poesia põe em evidência que a integridade é superestimada. Estar inteiro, para quê? A que custo? Que vida seria essa que não nos fere, que acontece sem nos afetar, sem deixar cicatriz em seu curso? Essa é a sabedoria deste livro, a sabedoria que têm as crianças em sua teimosia, determinação, desobediência, genuinidade.
[…] Não teremos
mais do que o momento de esplendor antes de partir
sem deixar rastros de ter
estado aqui, e não é muito mas basta
às flores que se abrem uma vez
e murcham, por que não teria
de ser suficiente para mim, para nós dois.
No final, não teremos mais do que aquele momento de esplendor. Claudia Masin afirma com sua poesia que o choque é necessário para que haja movimento. Investimento espetacular da fórmula. É por isso que este livro é um alívio, um grito vital e, ao mesmo tempo, uma ode ao instante, ao acidente.
Você foi o acidente, o freio súbito
o impacto brutal, o silêncio
que segue o impacto
o instante em que o mundo para e não se sabe
se estamos vivos ou mortos, feridos
ou intactos.
Se ela optou por escrever sobre Crash, o filme de Cronenberg em que os personagens se/nos excitam pela fronteira tão delicada com a morte, não é por acaso. Até que ponto somos capazes de arriscar nossas vidas por um prazer imenso? A resposta é clara para um menino (que ainda não aprendeu a medir as consequências) e para alguém que experimentou um prazer extraordinário. E uma vez experimentado, não há como voltar atrás.
[…] Tem
que continuar doendo para que não esqueçamos
que um dia aconteceu, que não é verdade
aquilo que cremos certo, que não há nada
impenetrável, que o corpo
se quebra e às vezes
não pode ser reparado […]
A questão que se coloca é: queremos reparar esse corpo e esquecer o que tanto gostamos? Esse filme me ensinou a desconfiar do puro e do forte, e comecei a ver beleza no vivo, nos musgos, na quebra.
[…] Que você choque
comigo mais uma vez quero pedir,
porque a matéria sujeita a uma violência incalculável,
da ferocidade que lhe a entrado,
a alma transformada em matéria,
mais uma coisa entre as coisas, um organismo
que sangra e se retorce. E ainda mais
atroz é a calma que vem depois do desastre, não me deixes
cair nessa calma como a besta cai
numa armadilha. […]
A paisagem desta poesia é a destruição, mas sua voz é poderosa, um grito vital que emerge dela. E não é só o que se diz: é o seu ritmo incansável e sedutor; é sua pontuação imprevisível, que faz com que cada palavra tenha o peso que merece; são seus finais irrevogáveis, suas epígrafes tão bem-sucedidas. É ler várias vezes o mesmo poema e sempre encontrar algo diferente, que aparece no momento indicado. É encontrar algo que mexe comigo em cada poema, é terminar a leitura de cada um e acreditar que nada pode superá-lo, até ler o próximo e sentir o mesmo novamente. Nada passa despercebido, nada é irrelevante. É que há algo de dolorosamente vital nessa consciência de vulnerabilidade, da necessidade – e transcendência – de encontros com outros corpos. Há algo, sem dúvida, que está assustadoramente próximo da morte nessa intensa sensação de estar vivo. Essa busca às vezes se volta contra nós, mas é porque somos frágeis que sentimos, que amamos, que sofremos.
Além do prazer da leitura, sua escrita tem outra força sobre mim: me dá vontade de escrever. São poucos os escritores que fazem isso me acontecer (penso agora em Marguerite Duras, Clarice Lispector, Juan José Saer e não consigo pensar em muitos mais). Eles geram a coisa mais linda que podem me gerar, e eles nunca saberão disso: duvido que o façam conscienciosamente. Possivelmente tenha algo a ver com escrever desde as entranhas, mas não sei. De qualquer jeito, sou muito grata por isso.
Este é talvez um texto sobre agradecimentos. À Claudia Masin pelos poemas, pela insistência em lembrar que onde há uma cicatriz há vida, há desejos, há sentimentos; à literatura, por gerar essas vibrações, por nos permitir essa outra forma de viajar ficando quietxs; e a quem me deu este livro, por alimentar o frágil, por saber sempre, a cada vez, o melhor presente que pode me dar.
Poemas – Tradução livre própria
Crash
Você foi o acidente, o freio súbito
o impacto brutal, o silêncio
que segue o impacto
o instante em que o mundo pára e não se sabe
se estamos vivos ou mortos, feridos
ou intactos. Você foi a fumaça
densa, acre, insuportável que se eleva
depois, o cheiro
do combustível pulverizando
na calçada fervente, os gritos animais.
Eu fui uma sobrevivente sentada
na beira da rota,
partida, todos os ossos acesos
como uma fogueira que terminassem
de atiçar com as brasas novas, esfaqueando
na medula, nas costas o fogo. Não se volta
a caminhar completamente erguida
uma vez que você foi assim
abatida. Você aprende, imita
a maneira com que os outros conseguem se plantar,
levantam a cabeça, andam firmes
como se a coluna vertebral fosse
essa estaca a que estávamos amarrados
e não uma chama fraca que poderia
simplesmente extinguir-se. Que você choque
comigo mais uma vez quero pedir,
porque a matéria sujeita a uma violência incalculável,
da ferocidade que lhe a entrado,
a alma transformada em matéria,
mais uma coisa entre as coisas, um organismo
que sangra e se retorce. E ainda mais
atroz é a calma que vem depois do desastre, não me deixes
cair nessa calma como a besta cai
numa armadilha. Tem
que continuar doendo para que não esqueçamos
que um dia aconteceu, que não é verdade
aquilo que cremos certo, que não há nada
impenetrável, que o corpo
se quebra e às vezes
não pode ser reparado e então
já não tem medo,
não sente esperança, sabe o que tem
que saber e finalmente repousa
do esforço por evitar o dano inevitável.
All that jazz
que nunca se saiba se foi batalha ou dança
Arthur Rimbaud
Há um ritmo em todas as coisas, as tristes,
as desejadas, as belas, as temidas,
as horríveis. Eu o roubei, o tornei meu. Não é
um ritmo afiado e harmônico.
É partido, está quebrado e eu estou quebrado
e por isso consigo
senti-lo nos ossos: começa
sem direção nem sentido, treme, luta
temerariamente contra o silêncio
e se termina. Não tem um para quê, não há motivo
para quebrar o magma, diferenciar-se,
ser o pequeníssimo alívio na planície, o acidente
no terreno baldio. Teria
que ficar no indistinto,
teria que se fundir em algo maior,
ser uma partícula que não deseja nada: nem nascer nem morrer
nem mover do lugar em que caiu. Mas há
uma vibração que sacode
aos mortos ou aos nunca nascidos. Nos inquieta
tanto como as pedras o início do terremoto:
elas não sabem, não poderiam
saber o que lhes espera, se deixam levar, empurradas
por uma força irresistível,
desconhecida. Para que a agitação, a ânsia
no centro de algo que vai voltar
a se acalmar como se nunca
tivesse movido? Te espero
como esperava o mundo no início, a explosão
que o acordaria: com esperança
e com terror. Sou a matéria
que vai se acender e dançar no ar
como dança aquilo que nunca tinha estado vivo
e vai morrer. Não teremos
mais do que o momento de esplendor antes de partir
sem deixar rastros de ter
estado aqui, e não é muito mas basta
às flores que se abrem uma vez
e murcham, por que não teria
de ser suficiente para mim, para nós dois.
Foto de Luísa Machado.